A PEJOTIZAÇÃO: O que o Advogado de balcão vê por trás da pessoa jurídica
Por João Dallapiccola
Após mais de quarenta anos de exercício da advocacia de balcão, atuando incansavelmente na trincheira na defesa dos direitos sociais, tenho testemunhado, nas últimas décadas, uma transformação significativa nas formas de contratação do mercado de trabalho brasileiro, impulsionada pela busca por maior flexibilidade e redução de custos operacionais.
Nesse contexto, o fenômeno da “pejotização”, prática de contratar trabalhadores por meio de pessoa jurídica (PJ) para mascarar uma relação empregatícia celetista, consolida-se como uma transformação significativa no mercado de trabalho brasileiro. Impulsionada pela busca de flexibilidade e redução de custos, essa estratégia acende um debate jurídico essencial sobre a precarização dos direitos sociais e a violação dos princípios protetivos da CLT.
A linha que separa a legítima prestação de serviços autônomos da fraude trabalhista é tênue, sendo frequentemente objeto de disputas judiciais. A caracterização do vínculo de emprego, nesses casos, depende da aplicação do princípio da primazia da realidade, onde a verdade fática se sobrepõe à forma contratual, e da análise dos requisitos do artigo 3º da CLT, em especial a subordinação jurídica.
Este artigo propõe-se a analisar a “pejotização” à luz da jurisprudência trabalhista contemporânea, examinando os fundamentos que levam à descaracterização do contrato de prestação de serviços e ao reconhecimento do vínculo empregatício, com base em decisões recentes do TST e dos TRTs.
Adicionalmente, aborda a expectativa de um futuro pronunciamento do STF, que, em sede de repercussão geral, deverá definir os contornos e a validade dessa modalidade de contratação no país, com impacto direto em milhares de relações de trabalho.
1. A “Pejotização” como Fraude à Legislação Trabalhista
A arquitetura do Direito do Trabalho brasileiro é construída sobre um pilar de proteção ao trabalhador, reconhecendo a assimetria natural na relação capital-trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu arcabouço normativo, estabelece uma série de direitos e garantias irrenunciáveis que visam a assegurar condições dignas de trabalho.
Dessa forma, o instituto da “pejotização” configura-se como um mecanismo que, sob o véu de uma relação empresarial entre pessoas jurídicas, visa fraudar a aplicação do regime protetivo da CLT e afastar direitos trabalhistas irrenunciáveis.
Cumpre ressaltar que a contratação entre empresas é legítima quando reflete uma relação empresarial genuína, na qual estão ausentes os requisitos do vínculo empregatício. A prática condenável, no entanto, é a utilização desse formato como artifício para simular uma situação inexistente, com o objetivo específico de burlar a lei.
O principal instrumento de combate a essa fraude é o artigo 9º da CLT, que declara a nulidade dos atos destinados a fraudar seus preceitos. Este dispositivo atua como uma cláusula geral antiabuso, anulando arranjos contratuais que, apesar da aparência de legalidade, tenham por finalidade real suprimir direitos.
Para desvendar a realidade oculta pela forma jurídica, aplica-se o princípio da primazia da realidade, basilar na hermenêutica trabalhista. Segundo este princípio, a natureza da relação é definida pela concretude dos fatos, e não pela denominação contratual. A submissão a ordens, horários fixos, remuneração mensal e pessoalidade, elementos típicos da relação de emprego, prevalecem sobre a mera existência de um contrato de prestação de serviços e emissão de notas fiscais.
Conclui-se, portanto, que a análise da “pejotização” demanda uma investigação profunda da dinâmica fática da prestação de serviços, transcendendo a mera verificação documental para aferir a presença dos elementos caracterizadores do vínculo empregatício.
2. Os Requisitos para a Configuração do Vínculo Empregatício
No contexto da “pejotização”, a tarefa do operador do direito é investigar se, por trás da autonomia presumida de uma pessoa jurídica, não se escondem os seguintes elementos: a pessoalidade, que se traduz na prestação de serviços intuitu personae, ou seja, por um trabalhador específico que não pode se fazer substituir; a onerosidade, caracterizada pela contraprestação financeira periódica, assemelhada ao salário; a não eventualidade, que se revela no trabalho contínuo e inserido na rotina permanente da empresa; e, de forma decisiva, a subordinação jurídica, elemento central que se manifesta no poder de direção, controle e fiscalização do empregador sobre o modo como as tarefas são executadas, por meio de ordens, metas e controle de jornada.
A presença conjunta desses quatro elementos no dia a dia da prestação de serviços desmascara a ficção do contrato de prestação de serviços e impõe o reconhecimento do vínculo empregatício, com todas as garantias e direitos a ele inerentes.
3. A Posição Atual dos Tribunais Trabalhistas
A teoria que sustenta a nulidade da “pejotização” fraudulenta encontra eco robusto na jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas. De forma consistente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) têm reafirmado que a análise da relação de trabalho deve se pautar pela realidade dos fatos, independentemente da roupagem jurídica adotada pelas partes.
Um ponto crucial na análise jurisprudencial contemporânea é a distinção feita em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal que validaram a terceirização de todas as atividades de uma empresa (ADPF 324 e Tema 725 da Repercussão Geral). Os tribunais trabalhistas, liderados pelo TST, têm sido enfáticos ao afirmar que a licitude da terceirização não serve como um salvo-conduto para a “pejotização” fraudulenta. Uma coisa é a contratação de uma empresa especializada para realizar um serviço (terceirização); outra, completamente diferente, é a contratação de um indivíduo como pessoa jurídica com o único fim de mascarar uma relação de emprego subordinado.
Em suma, a jurisprudência trabalhista atual, mesmo após as decisões do STF sobre terceirização, mantém-se firme na proteção contra a fraude, invertendo o ônus da prova e reconhecendo o vínculo sempre que a realidade fática demonstra a presença dos requisitos da CLT.
4. A Ameaça à Competência da Justiça do Trabalho e a Expectativa do Julgamento no STF
O iminente julgamento da “pejotização” pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, representa um momento decisivo e potencialmente ameaçador para a proteção trabalhista. A competência especializada da Justiça do Trabalho, consagrada no artigo 114 da Constituição Federal, encontra-se sob risco diante da possibilidade de uma decisão vinculante que desconsidere seu legado e expertise.
A apreensão decorre da trajetória recente do STF, que, em nome de uma modernização, tem relativizado direitos sociais, privilegiando a negociação coletiva em detrimento de garantias legais. Essa tendência manifesta-se concretamente na reversão, por meio de reclamações constitucionais, de decisões da Justiça do Trabalho que haviam reconhecido o vínculo empregatício em casos de “pejotização” fraudulenta, inclusive em situações com provas robustas de subordinação. Tais decisões do STF têm, preocupantemente, conferido preponderância à forma contratual, negando na prática o princípio da primazia da realidade.
O temor central é que o Supremo, ao julgar o tema de forma definitiva, valide a “pejotização” de modo amplo, sob o pretexto da liberdade contratual. Tal desfecho equivaleria a chancelar a fraude e esvaziar a competência constitucional da Justiça do Trabalho, transformando-a em mera espectadora do desmonte dos direitos que tem a missão de proteger.
5. Conclusão
Este artigo demonstrou que, para a Justiça do Trabalho, a única com real autoridade no tema, a validade de um contrato se mede pela verdade dos fatos. O princípio da primazia da realidade e a vedação à fraude do artigo 9º da CLT são os instrumentos que nos permitiram, até hoje, lutar contra a precarização. A jurisprudência trabalhista, de forma corajosa, soube distinguir a lícita terceirização da fraudulenta contratação de mão de obra subordinada.
O desfecho desta questão, contudo, permanece suspenso ante a iminência de um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. A decisão da Corte poderá tanto reafirmar a doutrina protetiva, honrando a competência especializada da Justiça Laboral, quanto instaurar um paradigma perigoso, que privilegie uma liberdade contratual frequentemente fictícia.
Enquanto essa definição não ocorre, a “pejotização” permanece como um campo de tensão. A esperança, que nunca morre em quem milita na advocacia social, é que a Suprema Corte não feche os olhos para a realidade e compreenda que a análise criteriosa dos fatos, guiada pelos requisitos da CLT, é o único instrumento capaz de garantir que a modernização das relações laborais não se converta em um definitivo retrocesso civilizatório.
Escrito em conjunto por João Batista Dallapiccola Sampaio e Antônio Pichara dos Santos Sily, advogados.
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Advogado há 39 anos, especializado em direitos sociais e graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é pai orgulhoso e avô realizado, com uma trajetória marcada pelo compromisso com a justiça e a ética profissional.


