Trump, EUA, Brasil: reindustrialização e desglobalização

Trump, EUA, Brasil: reindustrialização e desglobalização

Quando anunciou a imposição de tarifas ao redor do mundo, o presidente americano Donald Trump enfrentou ondas de protestos, inclusive do próprio povo americano. O episódio tem sido tratado pela mídia como “tolice” de um dirigente “louco” e “burro”. Na verdade, está inserido num contexto recente e pouco debatido: a desglobalização e a busca pela reindustrialização.

Chegando à segunda década do século XXI, países díspares como Estados Unidos e Brasil são obrigados a rever a teoria econômica liberal. De um lado, ela não alcançou o objetivo de democratizar os países e consolidar a paz entre os povos. De outro, ela não realizou a expectativa de resgatar os povos da pobreza e de criar nações mais prósperas. Seja em precariedade econômica, seja em vulnerabilidade nacional, a globalização hoje cobra reveses pesados de quem apostou em seu credo.

Na teoria, a globalização parecia trazer vantagens para todos. Soava atrativo e lógico terceirizar a produção em outros países. Empresas ganhavam porque reduziam custos. Consumidores ganhavam porque compravam mais por menos. Governos ganhavam porque recolhiam mais impostos. Os EUA ganhavam porque pareciam ter provado que o liberalismo e seus mecanismos políticos, como a democracia, haviam conquistado a vitória final. Anunciou-se o fim da história, da pobreza, dos conflitos. O que poderia dar errado?

Tudo. Simplesmente tudo.

Brasil

Em países subdesenvolvidos como o Brasil, o principal resultado do liberalismo ainda tem sido a precarização do trabalho. Mesmo aqui, a globalização varreu para outros países o setor produtivo. O resultado mais marcante disso ainda é a perda de muitas vagas de emprego. A idéia de que essas vagas desapareceram devido às máquinas é meramente parcial. Grande parte deles foram em verdade exportados para países como Vietnã e Tailândia, aprofundando o desemprego no país de origem.

A globalização continha a promessa de que esses empregos não fariam falta. O trabalhador encontraria funções menos pesadas e mais interessantes no setor de serviços. Tecnologias fariam o trabalho manual. A população se tornaria cada vez mais letrada e bem formada academicamente. A mão invisível e benévola da globalização cuidaria de distribuir essas benesses. O mundo viveria uma época singular de prosperidade.

Pois a promessa não se cumpriu. O setor de serviços tem sido incapaz de absorver mão-de-obra, ficando cada vez mais precário. As fábricas são escassas. Adentrar o setor público exige se acotovelar em concursos cada vez mais concorridos. Ao comum dos brasileiros, resta o desemprego, o subemprego ou o auxílio governamental. No mais, trabalha-se muito, ganha-se pouco, a carga de impostos sobe, o valor do dinheiro despenca.

Mesmo quando gera riqueza, a globalização impõe pobreza em países subdesenvolvidos. Ela beneficia o empresariado ao custo de perdas à massa trabalhadora. Apoiado por políticos, a classe empresarial desindustrializa o país, terceirizando a produção, aumentando os lucros e reduzindo a oferta de empregos. Como resultado, a classe média se reduz, fazendo crescer a distância entre ricos e pobres.

EUA

A globalização também cobra reveses econômicos de países desenvolvidos, como os EUA. Isso muito embora se afirme que o contexto de lá seria diferente. Por exemplo, ao contrário do Brasil, a desindustrialização nos EUA não parece gerar desemprego. Isso explica como progressistas continuam defendendo a imigração como forma de suprir mão-de-obra. O argumento continua plausível.

Apesar disso, a verdade é que os americanos padecem em situação análoga a de países como o Brasil. Vide a situação da Geração X, nascida na década de 2010. Acreditando nas promessas da globalização, decidiram se preparar com estudos. O resultado foi um endividamento estudantil que ainda os aprisiona em dívidas e que não consegue se pagar: os empregos atuais são precários, os ganhos são baixos, o custo de residência é explosivo.

“Jogo de Empréstimos: juros estão vindo”: estudante americana usa o chapéu de formatura para mencionar o seriado Game of Thrones ironizando seu endividamento estudantil.

 

Diferença entre média de renda familiar mínima para comprar uma residência (laranja) e média de renda familiar das famílias americanas (amarela). A maior parte das famílias americanas não ganha o bastante para comprar uma casa.

Mesmo quando avaliada em um contexto geopolítico, a globalização impõe reveses aos americanos. De primeira, ela parece indicar a vitória política definitiva dos EUA. Mas a verdade é que a desindustrialização privou os EUA de seus pátios industriais, um importante recurso à segurança nacional. Para entender isso, basta lembrar da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, o equipamento bélico enviado ao fronte era produzido nos Estados Unidos. Tanques, aviões, fuzis e botas saíam das fábricas americanas. Sem fabricação própria, aquele esforço bélico seria impossível.

Não contar com um pátio industrial torna os EUA vulnerável e dependente. No caso de uma guerra, produzir equipamentos seria difícil, situação que gera riscos à capacidade militar americana. A situação pode ser preocupante, especialmente em um cenário belicoso como o presente, com conflitos no Oriente Médio e no Leste Europeu. Considerando a posição geopolítica dos EUA, sempre há a possibilidade de os americanos se virem premidos a se envolverem nesses conflitos.

Por ironia, a produção bélica americana depende de de um país com o qual os EUA nutre atritos geopolíticos. Esse país é a China, o maior beneficiado da desindustrialização dos EUA. Os empregos dos EUA foram voluntariamente exportados para aquele país. O plano era o de infiltrar o liberalismo na China. Isso a transformaria em uma democracia liberal. Ao final, o liberalismo serviu apenas para fortalecer o regime comunista chinês, criando aos EUA um adversário geopolítico formidável. Mais uma promessa não cumprida da globalização.

 

Cartum ironiza forma como produção dos EUA hoje depende da China. Trump: “eu tenho as cartas”. Xi Jiping: “as cartas são feitas na China”.

Futuro

Nesse contexto, as tarifas de Donald Trump já não soam como algo inconseqüente e emburrecido. É uma reação esperada. Reindustrializar tornou-se uma necessidade econômica e, no caso dos americanos, também geopolítica. O resultado possivelmente incluiria produtos de menor qualidade, mais caros e entregues com demora. O prejuízo seria compensado por uma economia mais consolidada em território nacional e, portanto, mais conveniente ao país.

Alcançar isso, no entanto, será difícil. O maior obstáculo a ser enfrentado pela reindustrialização é a própria cultura liberal e democrática que os EUA ajudaram a disseminar mundo afora. Grosso modo, prevalece entre os países do ocidente a idéia de que liberar a economia é a panacéia perfeita para se alcançar paz e prosperidade mundiais. Ademais, prevalece o ideal democrático intransigente de que o clamor popular deve e precisa ser ouvido a todo custo.

Os próprios EUA têm sido vítimas da panacéia que defendem. O povo americano não parece entender o contexto e muito menos parece disposto a qualquer sacrifício. Ele mesmo cuida de protestar contra os esforços do governo Trump para obter reindustrialização. Estando em uma democracia, o governo e os políticos tendem a satisfazer esses clamores populares. E menos importa se isso custe uma desglobalização que se tornou imperiosa e incontornável.

A reindustrialização será impossível sem a imposição de medidas intragáveis como as tarifas. Sem subterfúgios como esse, os EUA não podem competir com países como China. Grande parte da competitividade chinesa surge da maneira como ignoram direitos humanos, direitos trabalhistas e defesa ambiental. Em uma democracia como os EUA, esses direitos não podem ser atropelados. Isso aumenta os custos de produção naquele país, minando sua capacidade de competir com a China num contexto de livre mercado.

Premidos a se reindustrializarem, os EUA agora enfrentam sua própria cultura de liberalismo e democracia. É um contexto que se repete até mesmo em países de situação díspar, como o Brasil. As promessas da globalização não se cumpriram, e a teoria liberal falhou diante da realidade. O debate sobre a desglobalização ainda é incipiente, mas ganha forma. É possível que não tarde até que fundamente ideologias políticas, propostas eleitorais e até mesmo clamores populares.

(Com informações de “Weintraub Sem Filtro”, “Shockwave Radio” e “1mero Podcast”. Ilustração: Freepik / gerada por IA)